Arquivo da Categoria: Party Program
As Zonas Autónomas Latentes
O texto anarquista mais influente e conhecido das últimas décadas, até à edição em 2009 da “Insurreição Que Vem” do Comité Invisível, será o “Zonas Autónomas Temporárias” de Hakim Bey. O texto percorre inúmeras situações colectivas efémeras, das cidades piratas à Fiume do futurista Annunzio, sugerindo-as enquanto exemplo de uma verdadeira liberdade percorrida por fluxos e desejos selvagens, códigos de honra heterodoxos, um negociamento constante de hierarquias e um óbvio ponto final que asseguraria que as multidões em devir insurrecional nunca se aburguesariam ou institucionalizariam. Hakim Bey é o pseudónimo de Peter Lamborn Wilson, académico norte-americano do ramo das religiões comparadas, orientalista convertido e convicto, que após deambular entre os festivos sixties e umas derivas neo-tradicionalistas descobriu Debord e os Situacionistas. A perenidade de uma série de experiências deixava de ser um problema para ser uma vantagem táctica, ou seja, o esgotamento anímico de um colectivo, de uma comuna, de uma insurreição ou de uma revolução deveria ser reconhecido e celebrado porque só assim seria prevenida a sua eventual decadência e derrota. Esse nomadismo dos desejos e das formas de vida nunca seria apanhado nas armadilhas mortais do sedentarismo, do activismo, da política formal. O sujeito revolucionário não era então o operário consciente ou o cidadão informado mas sim uma galerias de rebeldes e malfeitores: piratas, artistas, cowboys, índios, “apaches” do fin-de-siécle francês, patifes iletrados, espécimes exóticos das caraíbas, etc etc etc. Na verdade Hakim Bey foi mais inspirado pela pré-história da internet do que pelo império Comanche e projectava mais a sua utopia rizomática nas redes cibernéticas do que no festim bêbado de mil e um sacanas sem pai nem mãe. O conceito ganhou popularidade e foi adoptado por inúmeras dinâmicas mais ou menos interessantes durante os anos 90, da cultura das raves ilegais e da música electrónica às cenas okupas que proliferavam na Europa.
Não obstante o tom jocoso aqui apresentado Bey apresentava um quadro pertinente. Encurralado ante o “fim da história”, o presente contínuo do capitalismo, e os sucessivos falhanços do movimento operário organizado e desorganizado, parecia que o único acto subversivo possível seria aquele que dispensasse qualquer programa e estrutura e se constituísse numa irrupção ontológica do acto insurrecional. Por outro lado é também interessante a colocação do projecto utópico não numa sociedade hiperfuncional populada por seres hipersocializados, no fundo o projecto de grande parte da esquerda, mas sim na própria dissolução do sujeito revolucionário num cocktail marado de personagens marginais. Ante o império triunfante apenas o devir bárbaro faria sentido.
Ora onde a questão se torna bicuda é no processo através do qual um se constitui bárbaro. Pressupor-se-ia que o mero abandono do sistema, das suas regras, dos seus mecanismos de reprodução bastariam para afirmar essa secessão, e que questionando as últimas amarras da crença na sociedade todo um novo mundo estaria além da grande muralha. e invece no. Na verdade, e nas suas várias reformulações, é esta a questão de toda a actividade política especializada: como constituir um campo de acção e de reprodução própria que não seja baseado nesse hercúleo voluntarismo. Como tornar a insurreição natural. A questão que Bey procura resolver prescindindo de modo fatalista da resposta é precisamente esta: o projecto de mobilização política é minado pela insustentabilidade da sua vertente voluntarista e não necessariamente pelas suas insuficiências estruturais. A ideia de que ao esforço reprodutivo do capital é preciso fazer corresponder quantitativamente um número semelhantes de horas de esforço reprodutivo militante na direcção contrária, numa dialéctica encenada nos espaços de mediação e de pertença, assenta num simulacro de participação que vários processos têm vindo a por em causa.
Tornou-se claro que aos olhos do império todos somos marginais a partir do momento em que nos definimos para lá de meras rodas dentadas. Todos, dos professores às putas, dos desempregados aos reformados, dos “profissionais da desordem” aos indignados, somos uma ameaça potencial ao divino projecto económico a partir do momento em que procuramos salvaguardar uma especificidade alheia aos desígnios da incessante e kafkiana reprodução social do capital. A facilidade e despudor com que, um pouco por toda a parte, o poder assumiu a sua excepcionalidade relativamente às suas próprias leis mostra que a linha da marginalidade à polis não está nas fronteiras da sociedade responsável, mas exactamente entre o poder, multiforme e tentacular, e tudo o resto. É precisamente a partir desta consciência que o mundo tem pegado fogo. O que ontem ocorreu na Turquia não surge, apenas, do devir militante/activista/guerrilheiro dos Turcos mas precisamente da activação das suas zonas autónomas latentes e difusas: dos partidos às claques, do movimento LGBTQ aos curdos. A evidente secessão colectiva que junta a enorme lista de variantes ideológicas e identitárias assume-se a partir não de uma condição de povo consciente mas precisamente a partir da afirmação, não ideológica mas material, de uma alteridade total ao estado e ao poder. O medo só mudará de lado quando este vinculo com o/este estado for quebrado e quando nessa ruptura se encontre o modo de reconstruir os vínculos que nos interessam, sem vanguardas nem refúgios. A linha da frente está agora em todo o lado.
“Look how beautiful this barricade is”
Um “amigo internacional” enviou estes pequenos textos com as suas impressões dos dias que passou no parque Taksim. São aqui reproduzidas com a sua autorização.
9 JUNHO
“Everyday I’m Çapuling!” reads the banners all over Gezi Parkl, having become the unofficial slogan of the uprising. Çapulcu is what Prime Minister Erdogan called the demonstrators, meaning ‘looters’, hooligans, slackers. Accepting the challenge, the people have embraced the word, adding it to signs, shirts, graffiti, barricades, masks, buses. Everyone tells us how funny the slogans are; one barricade is spray painted with “Look how beautiful this barricade is.” Erdogan recently suggested that all women should have at least three children to support the great Turkish nation. So one of the chants blasted during the rally responded with: Do you want three children like us? The humor catches everyone off guard, especially the government, who have amped up the repression in Ankara, Izmir and other poor parts of Istanbul. But the mocking, jokes, and satire doesn’t stop, creating a complex language of resistance mixed with self-reflection that elevates the critiques to a whole new level of vitriol.
Saturday was the day of the football hooligans, where one hundred thousand of Istanbul’s ultras united to take part in the mega-rally at Taksim, screaming anti-government chants at the top of their lungs mixed with each team’s call-and-response. “Drop your sticks, throw away the gas, come and get us!” everyone shouted at one point. “Blue” “Yellow” Blue” “Yellow” could be heard for miles as crowds bounced up and down waving team flags and pointing firecrackers in the sky. Every inch was packed and noone could move anywhere but together. The bitter enemies of Fenerbahce and Beşiktaş did the impossible and joined together to shoot off fireworks and drape banners over the towering AKM building surrounding the square, as another hundred thousand people looked on and celebrated their previously unthinkable peaceful co-existence. Not only the uniting of the football fans but the sheer heterogeneity of political groups sitting together has been the most shocking of all. Weeks ago it was unthinkable for nationalists and kurdish groups to share space in a rally, let alone the scores of leftist sects that hate each other, but now its already normal. Not everyone gets along, but everyone has a corner, and everyone has the freedom to give and take as they please.
What’s stunning about the sprawling occupation of Gezi park and the mass demonstrations in Taskim square is the utter absence of large assemblies, consensus trainings, and open meetings, all forms of collective decision making which dominated other popular movements in the last years. Here, the spontaneous organization is complete, without anyone really having a clue of what’s going on overall, making it impossible to control, diffuse, or democratize with formal procedures and skilled experts. Hundreds of micro-groups and thousands of individuals volunteer to bring food, do medical work, sweep the grounds, patrol the barricades, distribute water, but it is in no way centralized or coordinated. Supposedly there are negotiations going on with some groups and the government, but to call those groups “representative” of the movement is laughable, and they know it, claiming not to speak for anyone at all. The government want the barricades gone, the square cleared, and the park tamed; the original organizers of the park occupation want no park destruction, no new mega-development, and a retreat of the government’s . But what do the tens of thousands across the country want? What do the hundreds of thousands, maybe millions in Istanbul who stream in and out everyday want? More than a reform, less than a revolution, something in between we don’t know how to name yet.
Sunday all the parties came out with their flags and speeches, but it was mostly a day for families, music, kids, and celebration. Down the main shopping streets rode bike gangs who rode in from all over Turkey to take part. Everywhere the same melodies could be heard: Tayyip Istifa! Tayyip Resign! Schoolchildren sit in smashed out buses posing for photos with their moms as trade-unionists form circles with environmentalists to dance to traditional music. The barricades are silent now, safety is assured, and all is well in this city on the hill. The calm has descended like a fog, everything seems like it will last forever, and that’s why everyone knows it won’t.
some answers to questions are here: http://mustereklerimiz.org/answers-to-occupy-wall-street
J
8 JUNHO
dear friends and others,
(This is not an analysis on the uprising, just an impression of my experience there so far. if you want an analysis, this is a good one: http://www.counterpunch.org/2013/06/05/istanbul-uprising/)
The first barricade seems impenetrable. Hundreds of bricks piled high, torn fences, and flipped over cars mix into a single wide shield of corrugated steel with long metal spikes sticking out front, as if ready to defend against any horse charge. But then you walk another 10 meters and see the next one, twice as big, more bricks, more fences, graffiti all over it. And then walk a bit more and see another, and another, and another, and not only the main street but all the side streets and every surrounding street is blocked. All the sidewalks are sand, having their bricks taken out and put to new uses. Constant streams of people are hanging around each barricade, posing for photos; there’s vendors selling spray paint, gas masks and goggles in between each barricade. Iphones, ipads, and all i-devices are capturing the moments of joy and pride for all people. All ages join in jumping on the destroyed cars, playing inside the smashed out tractors, buses, media vans. Anonymous style guy fawkes masks are ubiquitous, as are vendors selling kofte, corn, tea, and of course, flags, thousands of red flags with the face of the founder of the republic, mustafa kemal ataturk, but also trotskyist, anarchist, feminist, and other flags. Anarchists mix with nationalists, while football hooligans and environmentalists, anti-capitalist muslims and LGBT Kurds all share every meter of soil within Gezi Park, making it shoulder-to-shoulder tight as you try to squeeze through from one side to the next. Tents on top of tents, a whole village lives within the park now. Construction materials from the stalled development litter the surrounding streets. Every piece of constant capital looks like rubble after a battle. The Ataturk cultural center, a five-story building on one side of Taksim square, is draped with massive banners saying “Don’t Obey”, “Tayyip Resign”, and huge flags of Ataturk, mixed with anarchist graffiti and football signs.
The whole thing seems medieval, with helmets, javelin poles, and a view of the Bosphprus, Hagia Sophia, and Blue Mosque in the horizon; the square itself is more of a carnival than anything else. Hundreds of thousands of people packed together, dancing, singing, chanting, hawking, just celebrating each other’s presence in a cop-free central zone for the first time in memory. Everyone is arguing, debating, laughing, telling stories of tear gas and trees. The police haven’t attacked for a few days, there’s just too many people, too many barricades. Every 20 minutes another march comes through with another chant, sometimes kemalist, sometimes communist, sometimes a song, sometimes a prayer. A mix of youth, students, activists, families, and travelers set up picnics, tables, and booths selling whatever ideology or product they have. If it wasn’t for the mounds of brick and car barricades surrounding the place, one could easily forget the force and violence that started it all.
Most people we talk to say they didn’t like the park so much beforehand, but the police response to the original environmental demo was so harsh, that they had to come out. Some are angry against the neoliberal development, some against the new islamist laws banning alcohol, some against the police, some are just anti-government. Almost everyone is surprised that it grew so large, so fast. they’re worried how it will end, but for now, the feeling is joy, almost euphoric as the whirling dervishes and horns and drums bang nonstop. The side streets outside the park and blocks away are full of people too, drinking in public late at night and sitting on the street, where it was banned beforehand to do either. Cops have abandoned the entire region around Taksim, massing instead in Besiktas, by the presidential palace and football stadium. For now, every day is a rally and every night is a party.
The majority of violence, it seems, has moved to the other 60+ cities in Turkey where demonstrations arose, especially in Ankara. The local demands of the Gezi Park demonstration no longer have any relevance for the majority of people taking part in this mass uprising, but everyone is still somehow unified by their opposition to the police and enraged at the overreaction of the government . What binds the hundreds of thousands of people in Taksim square together can’t be explained by any political ideology or secular vs. religious divide or green movement. Rather, it seems that the sheer joy of taking over the center of the city has kept the movement alive, liberating it from both police control and the market-imperative of growth, determining what to do with every inch, ignoring all the construction machines, police trucks and media vans, sitting together indefinitely singing, talking, debating, dancing not for freedom or democracy, but for something else, something like, ownership of the present.
J
Delicias Turcas
Sempre que alguma capital mundial se incendeia surgem imediatamente os lamentos relativos à mediocridade mobilizadora do povo de Portugal: submisso, triste, incapaz, frustrado. O queixume sobre o queixume assume sempre um ponto de vista essencialista no qual o poder de fogo popular está inscrito num ADN colectivo, fatal, no fundo tão português quanto o bacalhau ou o pastel de nata. Os macambúzios são eventualmente confrontados por uma mão cheia de românticos que histéricos abanam os cartões vermelhos e gritam haver quem diz não! haver quem diz basta! e que embalados pela hiperventilação e adrenalina de quem grita em voz alta inclinam a cabeça e assumem pose de capa de jornal de secção da quarta.
Ora tudo isto se torna ainda mais evidente quando ao mesmo tempo que uma manifestação em Lisboa se volta a desenrolar enquanto passeata e enquanto mero background para os soundbytes das figuras da esquerda, em Istanbul e em Ankara todos, mas mesmo todos, do cão ao periquito, colaboram para destruir o sistema. Claques de futebol enterram as armas e colaboram entre si, as retroescavadoras são comunizadas, os estudantes de enfermagem fazem cadeias de transporte de calhaus, fogos de artifício voam contra os helicópteros, etc, etc, etc.
Reduzir um processo complexo e pleno de sentidos contraditórios aos 30 segundos que passam na TV ou aos 3 minutos do videozinho do youtube fazem com que tudo adquira um sentido mistificante e simplista, que tudo se reduza a uma questão de coragem ou desapego. Ora afirmar que o problema da passividade em Portugal se encontra numa qualquer característica essencialista do povo, ou da sociedade, é persistir e reforçar um certo fatalismo desesperado e niilista. Longe de pretender esgotar o tema, ou sequer de o abordar com alguma profundeza, deixo aqui três sugestões de enquadramento da questão:
1) A geografia urbana do pais. Ao contrário de grande parte das cidades do sul da europa e do mediterrâneo, Lisboa é uma cidade vazia. Tunis, Istambul, Atenas, Roma são metrópoles gigantescas nas quais os centro históricos, ou outros, são habitados por uma imensidade de pessoas – são por excelência territórios cujas redes escapam largamente ao controle do estado e que assumem dinâmicas relacionais próprias não mediadas pelas instituições. Grande Lisboa tem cerca de dois milhões e meio de habitantes espalhados por territórios atomizados e dispersos, muita vezes fruto de migrações massivas de outros locais do pais, e onde portanto não emerge essa condição de estranhamento cosmopolita que fomenta o surgimento de hipóteses colectivas várias que depois se tornam operativas nos terrenos de confronto. Veja-se como os inúmeros cenários de resistência urbana dos últimos tempos, da Plaza Sol em Madrid à Avenida Bourghiba em Tunis, se tornam viáveis pela pré-existência de hipóteses gregárias que dispõe já de uma metodologia quando ocupam o território, sejam elas claques de futebol, okupas, etc. Não há ainda essa dimensão populacional que torna anónimizante o espaço público e o que nele se passa, ou seja, essa função primordial da condição urbana que torna a cidade o local da reinvenção de cada um no abandono das suas características de origem. Qualquer proposta subversiva mais séria terá de dedicar algum tempo à questão do território urbano e às especificidades locais de cada metrópole.
2) A narrativa do Estado Português é que este se constituiu contra o fascismo e que portanto ainda é “nosso”, ou seja, os instrumentos do estado, as suas funções e os seus organismos são bons, mas foram usurpados pela canalha. A questão não é discutir ou não a necessidade do estado, ou sugerir que todo o turco na rua é anarquista, mas propor que essa identificação com o poder e essa familiaridade com os órgãos do estado ainda previne que os protestos assumam outro nível. A relação com o estado será desconfiada e cada vez mais precária, mas este é essencialmente o principal veículo de socialização a vários níveis e não uma entidade herdeira de séculos de abuso e poder. O mito de que abril foi uma ruptura total nos mecanismos de poder e na sua reprodução é discutível desde várias perspectivas: primeiro porque não destituiu as elites que governam o pais, segundo porque realmente não abandonou nem reformou significativamente as formas e as influências do estado.
3) A esquerda portuguesa constitui-se exclusivamente dentro desse panorama participativo e tem intrinsecamente propósitos hegemónicos dentro da sua área política. As cisões dos dois grandes partidos assumem-se enquanto candidatas a essa hegemonia, sendo a sua prática essencialmente discursiva e organizacional. O debate entre diferentes perspectivas resume-se a questões palacianas e/ou identitárias e está fundamentalmente colado à agenda política e ideológica do poder, ou seja, não há um debate e uma prática que procure desbravar um caminho e propor linhas de reflexão e experimentação. Se de certo modo é relativamente indiferente o que é que fazem meia dúzia de militantes daqui e dali a questão torna-se mais pertinente quando esta esquerda se mostra incapaz de fazer o mínimo que se espera dela, ou seja, criar quadro conceptuais que enquadrem os processos de revolta em curso e que proponham mecanismos para a sua defesa e sofisticação. A maior parte da reflexão pública da esquerda, bem como dos seus agentes, salvo honrosas excepções, é paupérrima e meramente derivativa (e decorativa).
Etc etc etc
À PÁLA
Um Piano nas Barricadas: Autonomia Operária (1973-79) de Marcello Tarì. Edições Antipáticas 2013.
(cópia física à venda durante o fim de semana na feira do livro anarquista, outros pontos de venda a revelar em breve)
“Um Piano nas Barricadas. Autonomia Operária em Itália (1973-1979)” de Marcello Tari II
“Mas começam também a surgir outras figuras de explorados e exploradas que já não têm vontade de permanecer passivos no que toca à reestruturação da sociedade por parte do capital, como as empregadas dos grandes armazéns comerciais, que começam a reflectir sobre que diabo de trabalho era o seu em que deviam “sorrir” a toda a gente, antecipando por muitos anos e com um olhar bem mais crítico e combativo, as análises pós-modernas sobre os “afectos tornados trabalho”; ou os professores das escolas, que se vêm transformados em proletários intelectuais; ou ainda os técnicos industriais, para os quais uma alta qualificação, conseguida muitas vezes com grandes sacrifícios, correspondia a um “trabalho de merda”, desqualificado e aborrecido. Os estudantes começavam a pensar que não existia grande diferença entre a escola, a universidade e a fábrica e que portanto as técnicas de luta operárias poderiam e deveriam ser utilizadas nas suas batalhas: no fundo não era necessário um grande esforço de imaginação para compreender a escola enquanto fábrica, com os seus tempos, os seus departamentos, os seus dirigentes e os seus operários. No entanto, se em 1968-69 o fenómeno novo era constituído pelos estudantes que se aproximavam dos portões das fábricas, são agora os operários que aproximam de todas as formas de vida subversivas que habitavam a metrópole. A partir destes encontros nascerá a experimentação de uma vida mestiça, inteligente e particularmente dotada de uma força de contágio incontrolável.”
“Para o Movimento dos anos Setenta, contudo, as coisas nunca foram mecânicas e não bastava certamente um alargamento quantitativo das figuras e territórios do trabalho para produzir uma deslocação das lutas, era necessário dar um salto qualitativo enorme, que não correspondesse a uma requalificação das velhas lutas e dos novos sujeitos num novo molho, mas sim a uma ruptura que permitisse o reconhecimento de uma nova realidade ética metropolitana na qual já não havia lugar para as ladainhas marxistas-leninistas ou para o anarquismo de antanho. A questão era novamente (e ainda é), por um lado, como é que seria possível que as novas figuras sociais criadas dentro e contra o desenvolvimento recusassem e destruíssem não só o capital mas a si próprias enquanto parte do capital, ou seja, que se negassem enquanto sujeitos, deslocando assim novamente o conjunto das lutas e, por outro, questão fundamental, como construir uma organização das autonomias capaz de assumir o confronto com os aparelhos do Estado. Já não se tratava, com pretendia o operaísmo, de lutar “dentro e contra”, estava na hora do “fora e contra”. Em 1977 tentou-se dar o salto.”
BREVEMENTE E SEM PREFÁCIO DE BOAVENTURA SOUSA SANTOS!
“Um Piano nas Barricadas. Autonomia Operária em Itália (1973-1979)” de Marcello Tari I
“Durante o mês de Março os sindicatos, intuindo que a raiva operária estava em crescimento, começam a convocar greves sincronizadas de poucas horas, que não tinham qualquer impacto sobre o patronato e davam aos operários apenas uma incómoda sensação de frustração. As coisas tinham de mudar, e velozmente. Na edição de Abril de “Rosso”, na altura ainda o “jornal quinzenal do grupo Gramsci” de Milão, os operários das oficinas da Mirafiori relatam que tudo começou num dia em que fizeram uma assembleia sem os “bonzos” do sindicato. Os operários sentaram-se à mesa da cantina e começaram a falar entre eles, percebendo que todos concordavam que as formas de luta levadas a cabo pelos delegados dos conselhos de fábrica eram insuficientes. Mas descobrem também, graças aos mais jovens entre eles, que existem outras maneiras de estarem juntos: não burocratizadas, mais vivas, mais belas e das quais se sai mais forte. Decide-se mudar de sistema. Como em 1969, começam a ser vistas manifestações no interior das instalações da fábrica, agora lideradas por operários mais jovens que, com o rosto coberto com lenços vermelhos, atacam os chefes, os seguranças, os fura-greves e os espias, destroem a maquinaria, sabotam os produtos acabados. Vão todos em cortejo à reunião seguinte do conselho de fábrica e os delegados sindicais receiam seriamente ser agredidos: os operários interrompem a reunião e dizem “basta”. A 23 de Março, durante a enésima greve com manifestação interna, começa a ser preparado o plano de ataque: bloqueio das mercadorias em saída, piquetes nas portas de entrada da fábrica e grupos móveis de operários que controlam todos os departamentos. A 26 começa o primeiro bloqueio de uma hora, mas no dia seguinte a coisa torna-se maior, corre a informação nos departamentos, nos refeitórios, por todo o lado. Escondem-se as bicicletas dos chefes e dos fura-greves e organizam-se estafetas entre as diversas portas, sentinelas vermelhas sobem aos muros da fábrica, os telefones dos seguranças são sequestrados e utilizados para trocar informações em tempo real. A organização da luta transforma-se, de um fetiche adorado pelos mais variados inventores de “consciências externas” do proletariado, em algo que nasce no momento da acção e dentro desta. A ocupação da Mirafiori não deverá nada a ninguém: nem ao sindicato, nem ao PCI, nem aos grupos extraparlamentares: todos foram colhidos de surpresa e obrigados a perguntar a si próprios como fora possível que uma tal organização da luta, por maior que pudesse ser a sua invisibilidade, tivesse escapado por completo à previsão ou compreensão dos seus estrategas.
Não se tratava de qualquer espécie de espontaneísmo, mas antes a auto-reflexão prática e indelegável dos rebeldes, que criava e determinava de modo imanente o próprio poder da fábrica, não para a fazer funcionar melhor mas para a destruir enquanto agregação de exploração e domínio, de fadiga e de nocividade. Os delegados do PCI e do sindicato começavam a compreender o que se estava a passar e procuraram difamar quem levava avante as lutas com as acusações do costume: “aventureiristas” e “provocadores”. Mas era demasiado tarde e os funcionários da anti-revolução até poderiam ter-se retirado para ir jogar às cartas para a cantina. Se a 28 de Março é proclamada uma greve autónoma de 8 horas, a 29 o bloqueio é total, bandeiras vermelhas surgem de todas as portas da fábrica, funcionários e dirigentes são rejeitados nos piquetes e, adicionalmente, os blocos começavam a mover-se ameaçadoramente para fora do estabelecimento, ao longo dos cruzamentos, onde os ocupantes pedem aos automobilistas uma portagem para financiar a caixa comum. A ocupação da Mirafiori transborda, a indicação política é clara: sair dos muros da fábrica, apropriar-se do território.”
SAI MAIS LÁ PARA O FIM DO MÊS
Imagem
Tout a failli, vive le communisme!
Na sua coluna desta semana Nuno Ramos de Almeida afirma em boa voz a ideia que se tem sublinhado inúmeros momentos recentes: este governo tem de cair pela rua. A reemergência desta enquanto fórum e enquanto novo rio rasgado por afectos políticos inesperados veio sugerir duas ideias: A primeira é que perante o exercício do poder especialmente perverso do governo em funções a rua é a última carta de um povo acossado, aquela que não está limitada ou formatada pelas contingências e vicissitudes dos outros poderes. A segunda é que a rua pode actuar enquanto processo constituinte que sirva a uma reconfiguração da esquerda, renovando-a e reforçando-a, servindo simultaneamente enquanto argamassa que permita a união das esquerdas e enquanto diluente que suavize as suas densidades incompatíveis.
É nas inúmeras variantes desta nota que se têm processado os múltiplos encontros que deram então uma forma a essa rua – e que traduzem um pensamento interessante: que é necessário repensar as formas de poder nas quais nos investimos e revemos e que é necessário que essas formas novas destituíam as presentes.
Ora onde a questão se torna mais complexa é precisamente nas questões seguintes: que formas pode sugerir essa rua, tanto prévias como posteriores a ela, e de que falamos quando falamos da união das esquerdas. Esta problemática torna-se ainda mais urgente quando se tem evitado discutir a primeira em função da segunda, assumindo essa união um pendor alquímico e salvífico ante a barbárie neoliberal. A união das esquerdas passaria pela formalização de uma grande instituição que albergasse no seu seio as diferentes tendências emancipatórias num programa comum e razoável. Essa força permitiria constituir-se enquanto poder formal que tomaria posse das instituições de estado, injectando-as de liberdade e democracia, traçando um continuo estrutural da assembleia de bairro à assembleia da república. Na verdade poucas estruturas seriam mais kafkianas do que a que procurasse integrar numa mesma formalidade o voluntarismo dos activistas com a ortodoxia dos militantes à volta com dezenas de identidades ideológicas. Imagine-se a experiência recente do BE, some-se o PCP, uns pozinhos de extrema-esquerda e ala esquerda do PS e multiplique-se pelos aparatos de estado. O resultado não é um amanhã que canta, é um Titanic vermelho a afundar com todos à porrada e uns quantos a grândolar as ondas que se abatem no navio. Por outro lado a rua que é convocada para abrir espaço a este projecto procurando manter-se num regime de governabilidade abre caminho a outra questão: ao sugerir-se enquanto hipótese de discurso, ou seja, ao perder a sua autonomia, inscreve-se num argumentário que mais depressa se prestará a justificar pactos de regime entre as diversas tendências do poder do que a qualquer escancarar de portas à esquerda que vem.
Não se trata aqui de contrapor à “união das esquerdas” um vago sonho molhado de fúria popular indistinta ou de menosprezar as riquíssimas experiências aí implicadas, mas a de começar a sugerir outras linhas de reflexão: uma relativa à validade do conceito de “esquerda” enquanto comunidade especializada e separada, do colectivo anarco-nãoseiquê ao grande partido da classe trabalhadora, que se procura constituir enquanto instrumento de poder e uma outra relativa a como esse campo foi perdendo a sua materialidade. Generalizando grosseiramente este surge como o traço comum: se uma parte maioritária da reflexão e prática de esquerda se foi construindo tendo em conta a sua constituição enquanto estado, por vias democráticas ou revolucionárias, uma outra, minoritária, foi-se afirmando de modo identitário, procurando acima de tudo assegurar a sua reprodução social e o seu papel essencialmente decorativo. Ambas se pautam no entanto pela mesma questão, a de propor uma procura e um gregarismo essencialmente ideológicos que se vieram a revelar francamente incapazes nos últimos tempos. Que, por exemplo, as assembleias de bairro saídas das acampadas no estado espanhol se estejam agora a constituir enquanto cooperativas mutualistas atesta bem essa necessidade: organizar, organizar, organizar sim, mas à volta de algo imediato, prático, tangível.
Isto para dizer que, nesta humilde opinião, o governo só cairá pela rua quando ela se apresentar inequivocamente enquanto ingovernabilidade e que a rua só ganhará esse poder quando se assumir enquanto materialidade colectiva e não enquanto espaço de reivindicação.
“Sobre a passagem de alguns milhares de pessoas por um breve período de tempo”
Para animar ainda mais a semana:
O movimento social vai nu
No jornal I de ontem saiu um artigo pidesco sobre o QSLT. O artigo surge em grande parte enquanto tentativa de descrédito da “plataforma”, sugerindo que afinal este é dirigida por uma espécie de maçonaria de esquerda e que a presença de militantes e dirigentes partidários de certo modo macula as suas pretensões de inaugurar novos modos de participação política. As alegações venenosas e muitos factos errados provocaram, justamente, bastante indignação entre os participantes e simpatizantes que afirmaram rapidamente que a desqualificação de alguém pela sua pertença a partido de esquerda era algo politicamente bastante dúbio. Já relativamente ao resto das acusações não vi ninguém contestar ou ficar ofendido pela sugestão: que o QSLT se tinha constituido enquanto forma de conduzir o conflicto social às urnas e que apesar do seu cunho de novo “movimento social” funcionaria através de um bastante exclusivo centralismo democrático informal.
Ora o artigo sai um dia depois de um livro em que umas das pessoas visadas enquanto “lider” no artigo nos dá a sua narrativa outono quente de 2012. Na mini-biografia final o autor diz que a sua actividade política consiste em ser dirigente de um movimento de precários. Esquece-se de dizer que também faz parte da mesa nacional do Bloco de Esquerda e que todos os membros desse movimento de precários são militantes ou dirigentes do BE que se gabam publicamente de, enquanto BE, controlarem o QSLT.
Quantas vezes no spectrum e em outros locais foram levantadas estas questões? inúmeras. Foram sempre insultadas enquanto tentativas de abanar gratuitamente o barco, de inventar guerrinhas, de sabotar o movimento quando este precisa de união, encaradas enquanto reveladoras de um profundo sectarismo, mau génio e fraca higiene pessoal.
O resultado é óbvio: Quem recusa encarar as suas próprias questões abre o flanco para que os outros as encarem contra ele.
Can white people say “nigger”?
Berlusconi e Arménio: Inimigos na política, amigos no humor
Portugal não deu apenas outros mundos ao mundo, arranjou também modos simpáticos de nomear os pretinhos
Esta semana no RDA
E ainda:
O Salganhada não é um grupo (é uma lista de emails), ou é um grupo informal que emergiu como grupo de trabalho das concentrações do Rossio em Maio de 2011. Relaciona pessoas maioritariamente ligadas ao trabalho nas artes, na cultura e na investigação (mas não só) que se encontram periodicamente (muitas vezes à roda de textos escolhidos, outras vezes na relação com convidados).
Temas como: movimentos sociais, corpo de manifesto, arte/política, polícia, cidade, trabalho e pós-fordismo, cultura, educação e performatividade têm alimentado o pensamento destas conversas sem se tornarem estanques. Há uma enorme vontade de manter a elasticidade das fronteiras entre temas e entre áreas de estudo atendendo às suas interligações.
nesta sessão vamos continuar a conversa a partir do texto “Bodies in alliance and the politics of the street” de Judith Buttler (http://eipcp.net/transversal/1011/butler/en)
O Book Bloc do RDA69 é um grupo de leitura informal que reúne algumas vezes por mês e se debruça sobre vários textos pertinentes para a análise dos tempos que correm. Era só o que faltava que fosse obrigatória a leitura prévia dos textos para participar na discussão, mas de facto a familiaridade com eles ajuda à fluidez e profundidade da conversa.
Das minorias às multidões: O lugar dos feminismos hoje
Para esta semana sugerimos dois pequenos textos que nos ajudem a pensar sobre o “lugar” que ocupam as minorias sexuais e de género, na multidão que se revolta contra o império opressivo do capitalismo e da autoridade. Quem são as minorias e quem é a multidão? O que as une e o que as separa, que alianças nos faltam?
O tema, como o nome indica centra-se nos feminismos actuais e nas revoltas em tornos da autonomia no género e nas sexualidades, mas a conversa pode e deve abranger todas as suas intercecções minoritárias, que se cruzam com o território de origem, a etnia, as relações de classe, os modos de vida, as práticas culturais ou religiosas, o mundo globalizado, a guerra imperialista, entre outras, que por vezes as tornam estas mesmas minorias excluídas dentro das próprias minorias.
Vamos pensar em conjunto, partindo de dois pequenos textos, que não esgotam o tema, mas que o introduzem numa dinâmica complexa sobre a autonomia que queremos, num mundo que as revoltas globais assumem emergir.
1- Multidões Queer: Notas para uma política dos anormais – Beatriz Preciado (http://www.scielo.br/pdf/ref/v19n1/a02v19n1.pdf)
2 – Subjectividade e política na actualidade – Toni Negri (http://fabiomalini.files.wordpress.com/2006/08/conf_anegri_port.pdf)
19h – SALGANHADA
20h – JANTAR
21h – BOOKBLOC
It was a very good year
11 Fevereiro – Terreiro do Povo – CGTP enche o Terreiro do Paço com cerca de 300 mil pessoas, segundo a organização
19 Abril – Despejo Es.Col.A Porto. Antiga escola ocupada despejada com uso de força no Porto.
25 abril – Manifestação comemorativa do 25 de abril especialmente combativa. Ocupação de um imóvel da CML na Rua de São Lázaro em solidariedade com o despejo da Es.Col.A da Fontinha. No Porto cerca de 2000 pessoas marcham até à Fontinha e reocupam a Es.Col.A.
1 Maio – Manifestação da CGTP em Lisboa. Manifestação anti-autoritária em Setúbal.
30 Junho – Manifestação MSE – Movimento Sem Emprego reúne cerca de 300 pessoas em Manifestação
29 setembro – CGTP volta a reunir no Terreiro do Paço largas centenas de milhar de pessoas. Anunciada uma greve geral para 14 de Novembro.
13 Outubro – Artistas organizam protesto cultural contra a austeridade.
27 Novembro – CGTP promove concentração em protesto contra aprovação do orçamento
A meia-dúzia.
Na Maria Crise uma reflexão interessante sobre se seriam ou não meia dúzia de empreendedores do caos, proactivos da anarquia, engenheiros da arruaça.
Algumas considerações imediatas
1 – Em São Bento estiveram largos milhares de pessoas, enchiam desde a Avenida Dom Carlos I até à Fundação Mário soares, bastante mais do que as últimas duas manifestações em frente ao parlamento
14N GREVE GERAL EUROPEIA
Imagem
I got 99 problems but Mitt ain’t one
RDA//BOOKBLOC – Itália 77
O Book bloc no RDA é uma discussão quinzenal de textos e temas que tem como base um ou mais documentos propostos anteriormente. Normalmente só uns quantos é que se dão ao trabalho de ler os textos mas isso nunca impediu ninguém de ir lá mandar bojardas à toa.
Quinta, 8 Nov.
19h – Conversa
21h – Jantar & Convívio
22h – “Lavorare con lentezza” (Guido Chiesa, 2004)
“Se o observamos de facto com os olhos do militante e do ideólogo, o movimento de 77 foi o campo de batalha de linhas políticas ferozmente adversas – militaristas algumas, pacifistas outras. Organizações de diversa natureza – algumas feitas para a guerra, outras feitas para a paz – disputaram entre si o espaço político no seu interior.
Mas se o observamos do exterior (por assim dizer: da cara que revelou de si), ou se observamos, para além do confronto, a convivência de tendências de diferentes naturezas e as próprias biografias dos companheiros, vemos que, para lá dos vetos e das prescrições categóricas, que deslizam de um papel ao outro, que misturam e combinam histórias e experiências normalmente incompatíveis, então damo-nos conta de que o movimento destes anos, na Itália como na Europa, combinou intimamente, de modo contínuo e sistemático, iniciativa legal e ilegal, violenta e não violenta, de massas e de pequenos grupos, movendo-se ora segundo as leis do Estado de paz, ora do Estado de guerra: esta combinação não foi uma prerrogativa de uma organização, mas atravessou todas elas, superando-as e impondo a convivência de momentos organizativos diversos no interior de um mesmo sujeito social.
Esta característica, esta capacidade de combinar paz e guerra, de desenvolver uma iniciativa ofensiva sem produzir soldados, não só construiu a força do movimento como, em geral, é o elemento central da sua natureza comunista e subversiva.”
“Em contraste com 1968 e o movimento operaísta, os activistas de 1977 rejeitavam todas as elites políticas e não procuravam estabelecer outras novas. O impulso autónomo do movimento de 77 permitia-lhe escapar das formas tradicionais de organização, como partidos políticos ou sindicatos, e sobreviver sem manifestos ou lideres. Pelo contrário, o movimento agrupava uma miriade de interesses individuais, em pé de igualdade, formando uma rede que não era de todo homogénea. Foi precisamente esta teia aberta e indefinível de relações que tornou possível que grupos individuais cooperassem sem abandonar as suas identidades específicas.”
EM PORTUGUÊS:
https://spectrumzx.wordpress.com/2008/12/21/viver-com-a-guerrilha/
EM CASTELHANO:
http://www.traficantes.net/index.php/editorial/catalogo/otras/el_movimiento_del_77
EM INGLÊS:
(http://www.springerin.at/dyn/heft_text.php?textid=1971&lang=en%3D
http://libcom.org/library/20-generation-year-nine-youth-revolt-movement-77
http://libcom.org/history/1977-the-bologna-uprising
http://libcom.org/library/punk-autonomia
https://spectrumzx.wordpress.com/2008/12/21/viver-com-a-guerrilha/
Já não dá
Eu bem sei que nestes tempos conturbados é suposto contribuirmos todos para uma milenarista união das esquerdas, pôr de parte as questões e os sectarismos do passado, “fazer alguma coisa de extraordinário”.
RDA//BOOKBLOC – A GREVE HUMANA
ADENDA: Haverá jantar também nesse dia, a partir das 21h.
Claire Fontaine é o nome de um colectivo francês de artistas, ligados à revista TIQQUN, que tem vindo a desenvolver o conceito de greve humana. Propomos uma discussão à volta das potencialidades desse conceito a partir dos vários textos disponíveis sobre o assunto. Apresentamos aqui um excerto do único do qual está disponível uma (má) tradução em português.
“Grève Humaine” é o termo francês para “greve humana”, que designa o mais genérico movimento de revolta contra qualquer condição opressiva. É uma greve mais radical e menos específica do que a greve geral ou a greve selvagem.A greve humana ataca as situações económicas, afectivas, sexuais e emocionais de que os indivíduos se encontram prisioneiros. Fornece respostas à pergunta: “como nos tornamos diferentes daquilo que somos?”. Não é um movimento social, embora encontre na revolta e na agitação um terreno fértil para se desenvolver e crescer, por vezes até contra elas.
Por exemplo, há quem diga que o movimento feminista na Itália dos anos 1970 aniquilou as organizações políticas de esquerda, mas ninguém fala do que as organizações políticas de esquerda faziam às mulheres que a elas pertenciam. A greve humana pode ser uma revolta dentro de uma revolta, uma recusa não articulada, trabalho em excesso ou a recusa total de qualquer trabalho, consoante o caso. Não existe para ela uma ortodoxia. Embora as greves sejam realizadas para melhorar aspectos específicos das condições dos trabalhadores, são sempre um meio para atingir um fim. Mas a greve humana é um meio puro, uma forma de criar um presente imediato onde não há mais do que aguardar, projectar, estar expectante, ter esperança.
“Precisamos de mudar”: todos estão de acordo neste ponto, mas em quem nos devemos tornar e o que devemos produzir são as primeiras perguntas que surgem assim que esta discussão tem lugar num contexto coletivo. O reflexo de recusar qualquer presente que não traga consigo a garantia de um futuro tranquilizador é justamente o mecanismo da escravatura em que nos encontramos e a que temos de pôr fim. Produzir o presente não é produzir o futuro.”Mais textos:
http://anarchy101.org/1072/what-is-a-human-strike
https://docs.google.com/document/d/1nWjXfHJISRahzNk4ps4X7PLvDMjOImqM__8zQfjZU6Q/edit?hl=en
http://tarnac9.wordpress.com/2009/04/08/human-strike-after-human-strike/
http://anarchy101.org/1072/what-is-a-human-strike
“…Not with a bang but with a whimper”
Tudo o que é sólido derrete-se no ar.

“Se não têm pão, que comam brioches”
Contra a criminalização do protesto social. Texto aberto à subscrição.
Do RDA69:
Contra a criminalização do protesto social. Texto aberto à subscrição.
Têm surgido em órgãos de comunicação social diversas referências ao RDA69, ao GAIA e aos Ritmos de Resistência, que atribuem a estas associações e aos seus associados qualificativos como “radicais violentos”, “activistas anarquistas” ou “militantes perigosos”. Este conjunto de peças jornalísticas – nomeadamente as publicadas no Diário de Notícias e no Correio da Manhã – veicula várias informações falsas, com o intuito de criar um clima alarmista e permitir uma escalada repressiva contra os movimentos sociais.
Rejeitamos o processo de criminalização de indivíduos e grupos que integram o amplo movimento de contestação à austeridade e ao processo de devastação social em curso. Responsabilizamos o Governo e os defensores das imposições da troika pelas situações de violência ocorridas nas ruas das nossas cidades ao longo do último ano e meio. Confrontadas com uma resistência generalizada e uma gigantesca contestação popular, as autoridades desenvolvem uma grosseira encenação, em busca de bodes expiatórios, de maneira a encobrir o facto de se ter tornado insustentável o que ainda há pouco era apresentado como inevitável. O seu desespero é já um sinal da nossa força.
Repudiamos todas as tentativas de atribuir a uns poucos o que é da responsabilidade de todos. Somos tão radicais como os tempos que correm e o nosso único crime é a determinação com que continuaremos a resistir a todas as formas de injustiça e opressão. Violento é o desemprego e a exploração. Violenta é a miséria e a emigração forçada. Violenta é a ordem social que contestamos e a repressão que a sustenta.
Que se lixe a troika, queremos as nossas vidas.
SUBSCRITORES:
ADRIANO JORDÃO – Taberneiro, ALEXANDRE ABREU – Investigador e professor, ALEXANDRE SOUSA CARVALHO, ÁLVARO CARVALHO – Funcionário público, ANA ALCÂNTARA – Historiadora, ANA LUÍSA RAPOSO – Neurocientista, ANA NUNES – Professora desempregada, ANA SILVA – Desempregada, ANA VIRTUOSO – Licenciada em história, ANDRÉ CARMO – Geógrafo, ANTÓNIO CUNHA – Empregado de escritório, ANTÓNIO PEDRO DORES – Prof. Universitário, ANTÓNIO GUTERRES – Estudos urbanos, ANTÓNIO LOURENÇO – Antropólogo, dirigente associativo, activista, BERNARDINO ARANDA – Gerente comercial e dirigente associativo, BRUNO CARACOL – pintor, BRUNO PEIXE DIAS – Investigador, CARLOS GUEDES, CATARINA LEAL, CATARINA SIMOES – Artista Visual, realizadora, ELISA MONTEIRO BASTO – Professora desempregada, GONÇALO DUARTE DE MENEZES RODRIGUES PENA, GONÇALO ZAGALO – Investigador, GUALTER BAPTISTA – Investigador, activista, FERNANDO ANDRÉ ROSA – Sociólogo, formador, FERNANDO RAMALHO – Músico, FERNANDO SOUSA, FRANCISCO NOBREGA – Desempregado, FRANCISCO PEDRO – Jornalista, INÊS CAMPOS – Bailarina, INÊS GALVÃO – Antropóloga, INÊS BRASÃO – Professora do ensino politécnico, socióloga, ISABEL SOARES – Eng.ª de energias renováveis, JÉRÔME LECAT – Arquitecto, JOANA M. FERNANDES – Jornalista, JOANA LOPES – Reformada, JOANA PEREIRA – Desempregada, JOANA SOUSA – Bolseira de investigação, JOÃO BERNARDO – Escritor, JOÃO PEDRO CACHOPO – Investigador, JOÃO VALENTE AGUIAR – Sociólogo, JOÃO SOBRAL – Arquitecto, JOSÉ CANELAS – Prof. tecnologias de informação – JOSÉ BARBOSA – Engenheiro Aeroespacial, JOSÉ CARLOS DA CUNHA SILVA ANDRÉ – Designer gráfico, JOSÉ NEVES – Historiador e prof. Universitário, JOSÉ NUNO MATOS – Investigador, bolseiro, JOSINA ALMEIDA – Contratada na função pública, JÚLIA VILHENA – Arquitecta, HELENA DIAS, HELENA MARIA SILVA DE ALMEIDA – Psicóloga, HELENA ROMÃO – Musicóloga, HENRIQUE GIL, LIA NOGUEIRA – Restauradora, LAURA MARQUES, guardadora de vacas, LUHUNA CARVALHO – Cineasta, LUIS BERNARDO – Investigador bolseiro, LUIS FERREIRA, MAFALDA GASPAR – Técnica Superior na Administração Pública, MARA SÉ – Engenheira do Ambiente, MARÇAL ANT.º DAS NEVES C. ALVES – Engenheiro Civil, MARCOS CARDÃO – Licenciado em História, MARCUS VEIGA – Management/Direcção artística, MARGARIDA MADUREIRA, MARIA DO MAR FAZENDA – Curadora e Crítica de Arte, MARIA EMÍLIA LIMA COSTA – Prof. Universitária, MARIA MIRE – Artista Plástica, MARIANA AVELÃS – Tradutora, MARIANA SANTOS – Performer, MARTA LANÇA – Jornalista e produtora cultural, MARTA OLIVEIRA – técnica de serviço social, desempregada, MATILDE ALMEIDA – Marketeer, MIGUEL CARDOSO – Precário, professor e tradutor, MIGUEL CARMO – Engenheiro do Ambiente, MIGUEL CASTRO CALDAS – Dramaturgo e ensaísta MIGUEL LOURO – Freelancer, MIGUEL SERRAS PEREIRA – Tradutor, MIGUEL SILVA GRAÇA – Arquitecto, NUNO BELCHIOR – Agricultor, NUNO BIO – Consultor , NUNO SERRA – Economista, NOBER SANDERS, ODAIR AUGUSTO MONTEIRO, PAULO BORGES – Prof. Universitário, PEDRO CEREJO – Bolseiro de investigação/ Tradutor, PAULO COIMBRA , PAULA GIL – Precária, PEDRO MOURA – Musico, PEDRO NEMROD, PEDRO RITA – Advogado, RICARDO MALCATA ALVES – Professor, RICARDO NORONHA – Historiador, RICARDO VENTURA – Investigador, RITA DELGADO – Professora, RITA VELOSO, Professora Universitária, RUI DUARTE – Produtor, RUI RUIVO – Desempregado e Hortelão, SALOMÉ COELHO – Psicóloga/ Direcção da UMAR, SANDRA PAIVA, Gestão de projectos , SARA BAGINHA – Bancária, SARA BOAVIDA – Gestora de Projectos, SARA DELGADO, SÉRGIO LAVOS – blogger do Arrastão, SHAWN BERLIN, SÍLVIA SILVA, SOFIA YU – Fotógrafa documental, SUSANA DELGADO DOS SANTOS – Editora Júnior, TERESA MORAIS SILVA – Professora, TERESA SILVA – Gestora de projectos de voluntariado.
SUBSCRIÇÕES COLECTIVAS:
ASSEMBLEIA POPULAR DA GRAÇA E ARREDORES, ASSOCIAÇÃO CONTRA A EXCLUSÃO PELO DESENVOLVIMENTO (ACED), CASA DA HORTA – ASSOCIAÇÃO CULTURAL, GAIA – GRUPO DE ACÇÃO E INTERVENÇÃO AMBIENTAL, GRUPO TRANSEXUAL PORTUGAL, EXÉRCITO DE DUMBLEDORE, EDIÇÕES ANTIPÁTICAS, INDIGNADOS DE LISBOA, LIBERDADE 365, MOVIMENTO SEM EMPREGO, PAGAN, PANTERAS ROSA – FRENTE DE COMBATE À LESBIGAYTRANSFOBIA, PROJECTO270, RDA69, REVISTA RUBRA, RITMOS DA RESISTÊNCIA, UMAR – UNIÃO DE MULHERES ALTERNATIVA E RESPOSTA, UNIPOP, UNCUT PORTUGAL.
O RDA69 deseja ainda agradecer a todos os colectivos, blogues e pessoas que se solidarizaram através de textos próprios ou através da divulgação do comunicado.
Pessoas e colectivos que desejem acrescentar o seu nome a esta lista contactem por favor o RDA69 através de rdanjos69@gmail.com colocando “comunicado” ou “subscrição” no assunto do e-mail.”
Youths in shorts and flip flops throwing rocks at cops
1- A 15 de setembro do ano 2012 da graça do nosso senhor largas centenas de milhar de pessoas encheram as avenidas novas na maior manifestação desde o PREC. Chegada a Praça de Espanha largos milhares decidiram rumar à assembleia. E aparentemente entre esse momento e a madrugada do dia seguinte nada aconteceu, ou, segundo o correio da manhã, e o Daniel Oliveira, nada aconteceu para lá de umas ligeiras escaramuças entre a polícia e pequenos grupos de radicais perigosos, ou nas palavras do comentador da SIC, “os idiotas do costume”.
2 – Na verdade durante várias horas Lisboa centro viveu os confrontos mais acesos dos últimos anos. Várias dezenas de pessoas procuravam furar a barreira policial que protegia o parlamento, outras tantas apedrejavam a polícia, outros tantos milhares enchiam a praça, gritavam em uníssono com a linha da frente, aplaudiam quando algum polícia era atingido por um petardo ou uma garrafa. Largos milhares que enchiam a praça de uma ponta à outra. Durante várias horas. Nada portanto. “Os idiotas do costume”.

A blast from the past: Daniel Oliveira e os activistas desleais.
Aqui há tempos, enquanto apreciava esta nova plataforma do spectrum, fui andando para trás nos posts e tropeçando nas várias barbaridades e banalidades que aqui vos fomos deixando. Não sem nostalgia revisitei também algumas das polémicas com o Daniel Oliveira e encontrei entre outras esta, discutida também aqui, sobre as caras tapadas. Dizia Oliveira há cinco anos (nos comentários aos posts linkados):
“Sim, os nomes, as caras, a responsabilidade pelo que se diz e se faz é condição para ser activista. Só esse activismo é leal quando se vive em democracia.”
“O problema de não dar a cara é que dentro de cada máscara cabe sempre uma cara qualquer.”
E no entanto, cinco anos depois, onde DO via um problema parece que milhares de pessoas estão a ver uma possibilidade, exactamente pelo que afirma, que dentro de cada máscara cabe sempre uma cara qualquer. Já o activismo “leal” do Daniel tem sido um festival de honestidade e companheirismo, para não falar das vitórias gloriosas e incessantes na luta contra troika.
Nem bom vento, nem bom casamento, nem bom movimento, nem bom parlamento.
Na Catalunha um grupo de bombeiros sindicalizados decide proteger uma manifestação colocando-se entre ela e a polícia. Chegados à sede do governo, saltam e desmontam as baias que impedem a manifestação de se aproximar do edificio. Perante os bombeiros os Mossos d’esquadra piam muito mais fininho. Que sa foda style.
Em Portugal o serviço de ordem da CGTP agride violentamente um manifestante por pensar era anarquista. Na verdade era um militante de um partido político que tinha abandonado à última hora uma manifestação na qual tinha participado na organização, influenciando decisões. Fizeram-no inesperadamente de véspera por a achar demasiado não-institucional.
Convém relembrar estas situações quando se agita a bandeira dos brandos costumes, como se não existissem uma série de condições que objectivamente impendem a contestação social de assumir expressões mais interessantes. O debate nem é tanto se o povo unido precisa ou não de partido, porque se precisar por cá está bem fodido.
Um bando de vândalos selvagens
Hoje no estado espanhol acontecem mais de 80 manifestações. Na Catalunha é votada uma nova lei que criminaliza mais violentamente qualquer mobilização que saia um milimetro das normas. Em Madrid, segundo informações do sindicato da polícia, mais de 100 carrinhas do corpo de intervenção amanheceram com os pneus furados.
Que sa foda style
Desde quinta que várias ruas de Madrid e de outras cidades do estado espanhol são palco de massivas manifestações espontâneas que têm cortado ruas e resistido a uma fortíssima repressão policial, tudo porque foram anunciadas várias medidas de austeridades, todas menos severas das que por aqui foram já aplicadas. De golpe cabe a surpresa e a questão: qual é a excepcionalidade portuguesa que faz com que por aqui tudo seja tão estupidamente panhonha, mole e conformado? A resposta imediata, a que circula pela boca de toda a gente, do comentador da SICN ao mais feral anarquista, é também a pior e a que se torna imediatamente estéril e parte do problema: “somos um povo de merda, é uma questão cultural/histórica”. Todo um programa de fatalismo preguiçoso e hipócrita, extremamente conservador, que rapidamente resolve a questão reforçando o panorama que a convoca.
O 15m Madrileño tem as suas raizes na movida dos anos 80
Sendo obviamente ridículo procurar aqui em breves linhas responder e resolver essa problemática, mas sendo também óbvio que neste momento o ridículo será o menor dos nossos problemas, há observações claras a serem feitas: alguém acredita que o torna possível uma reacção deste calibre seja realmente um património comum de hispanidade rebelde que telepaticamente convoca todos os súbditos de Juan Carlos a convergir em força na plaza del sol?
Compare-se por um momento outras situações: No estado espanhol vários mineiros que estão há semanas em confrontos com a polícia são recebidos em madrid enquanto heróis por manifestações dos sindicatos. Em portugal numa greve geral sucedem umas ligeiras escaramuças entre manifestantes e polícia: a cúpula sindical afirma rapidamente censurar todo o tipo de vandalismo. Em directo para a TVI um líder sindical, a encabeçar uma manifestação que mais parece uma marcha fúnebre, diz que é uma pena terem acontecido confrontos porque dá mau aspecto ao movimento sindical lá para “fora”. Conseguem ainda espancar um outro manifestante por acharem que era “anarquista”. Esclarecido o equívoco o agredido tem poucos problemas em compreender que foi tudo apenas um mal-entendido, e o celeuma termina com um cházinho na sede. Dos seus bunkers ideológicos aos seus manifestos é notório como a esquerda institucional está rapidamente a deixar de ser uma anedota para se tornar apenas numa sucessão de punch-lines.
ganda mau aspecto
O que parece tornar possível uma maior resistência no estado espanhol são três coisas: Primeiro que as redes criadas pelos organismos de militância parecem ultrapassar a sua institucionalidade: dá ideia que a espontaneidade das manifestações surge porque existem ligações formais e informais entre os manifestantes que neste momento prescindem das instituições formais que eventualmente as terão criado. Segundo porque as dinâmicas de contestação e organização que compõem o reportório dos movimentos sociais são aproveitadas e adaptadas sem que isso signifique uma multiplicação do mesmos: não há uma explosão ou um crescimento das identidades anarquistas, okupas, autónomas ou esquerdistas mas sim um repescar das suas experiências de contestação e auto-organização das últimas duas décadas. Terceiro porque realmente o pessoal no estado espanhol parece não partilhar a mesma ânsia de respeitabilidade e decoro que cá: veja-se a caderneta que vai do “senta, senta, senta” ao “mau aspecto lá fora”, passando pelo intenso esforço do movimento em ser sempre apresentado nos media enquanto o mais expedito grupo de escuteiros de sempre. Parece estar a mudar, mas durante tempos bastava alguém dar um peido numa manifestação para que surgissem mil pessoas a segredar: “olha, nós somos pacíficos ok?”.
puro que sa foda style no Bangladesh
De novo esta semana: milhares de médicos reunidos em manifestação decidem terminar com a fabulosa acção de lançar balões amarelos ao céu para mostrar que são muitos. Outros tantos professores apostam em passar a semana vestidos de negro em luto pela educação pública. Coelho seguramente que não perdeu o sono entre os balões e os hábitos, já os ministros que tiveram de sair escoltados do parlamento espanhol não terão tido um sono tão descansado. Quiçá não fosse má ideia recuperar à classe política-empresarial o espírito “que sa foda” de que fala o Valete. O alegado triste fado da soturnidade lusitana é uma banhada e uma desculpa, é puro espectáculo vintage, é um cancro e um cadáver na boca. Quiçá não seja demais repetir o Vaneigem que disse que o desepero termina quando as tácticas começam.
Que sa foda
Será porventura necessário encerrar o debate esquerda extra-parlamentar versus esquerda institucional na sua vertente ideologia, identitária e tribal e procurar abri-lo numa vertente táctica e política. A esperança reside no entanto num outro factor: goste-se mais ou menos a internet, os blogues e o facebook alteraram as dinâmicas de contágio táctico e discursivo. Os Rossios, os 15 de Outubro, as ocupações que neste último ano foram constituindo um proto-movimento não nascem de uma contaminação vertical que parta de uma ou duas vanguardas ideológicas mais ou menos assumidas enquanto tal mas sim de uma contaminação mais horizontal veiculada em primeira mão por estes meios, ainda que depois, e ainda bem, os transcendam velozmente. A elaboração de um reportório de contestação e auto-organização estará assim a acontecer independentemente dos actores já em cena, e essa é a melhor notícia dos últimos tempos: felizmente que a eventual vanguarda do movimento não será um partido, um sindicato ou um “movimento”, mas sim um fantasma que insiste em assombrar as ruas do mundo inteiro.