As desonestidades intelectuais do NÃO

Confesso a minha incapacidade para lidar com a desonestidade intelectual. Fico fula, nervosa, sem resposta. Mas também, acima de tudo, acho que não existem respostas para este tipo de desonestidades. São retóricas, não é suposto ter resposta para elas. A única forma de combater este tipo de processo argumentário, passe o eufemismo, é democratizar a percepção da desonestidade, ou seja, partilhar com os outros o desconforto.
O melhor exemplo disto é a campanha do movimento do NÃO. Corações que batem, impostos, IVG versus doenças oncológicas e Alzheimer (porquê Alzheimer?!?!), bombas demográficas prestes a explodir (a criminalização da IVG como imperativo da nação xenófoba), a vida, a vida, a vida e as suas aleluias.

Gâmeta em que o coração está, erradamente, identificado como núcleo
Impávido e sereno, o movimento do SIM morde o isco, mas só de vez em quando. Por outro lado, não parece ter campanha. Tem razão, mas não tem campanha e a razão não basta para ganhar referendos e, com eles (é preciso não esquecer!) ter vitórias civilizacionais. Porque, para mim, é disso que se trata. Do afastamento de posições neandertais transpostas em lei. De reconhecer ao indivíduo a capacidade humana de tomar decisões, resolvendo, em simultâneo, um problema de saúde pública, de acesso desigual a tratamento clínico, de humilhações em tribunal e cumprimento de penas. Indo mais além, para mim – mas compreendo que não para todos – a questão é de reconhecer o corpo como espaço de jurisprudência do indivíduo, neste caso da mulher. Noutros casos, do outro género. Ser uma questão intencionalmente banida da discussão não quer dizer que não exista a questão. Como diz o outro, a prova de que o pudim existe é que o comemos.

Pudim que existe
O discurso NÃO é desonesto mas é “eficaz” e rápido. Os indecisos e mesmo os não-categoricamente-SIM perdem o norte. Diferentes perspectivas dão diferentes conclusões – “de facto, o meu pai tem Alzheimer!”. Passei por um post num blogue do NÃO – não linko, era o que faltava! – que tinha três parágrafos sobre a seguinte problemática: como é que os defensores do SIM poderão viver com a permanência de uma franja de clandestinidade, considerando a possibilidade de, por exemplo, uma menor com medo da ausência de anonimato (apesar da obrigação de sigilo médico – intencionalmente esquecido no discurso) não recorrer à IVG em estabelecimento oficial? E havia comentários com “respostas” de defensores do SIM que caíram nesta simples armadilha, esquecendo-se que quem tem de explicar a convivência com a clandestinidade é o NÃO!
Outro exemplo, neste caso de quem caiu na armadilha do coração-no-acto-da-fecundação ou do barulho das luzes sobre a criminalização. A recolher assinaturas dos Jovens pelo SIM, Saboteur deparou-se com uma mulher com cerca de 50 anos que explicava que não tinha a certeza se assinava a folha para participação na campanha daquele movimento porque tinha feito uma interrupção de uma gravidez e não tinha a certeza se tinha feito bem. Depois, Saboteur perguntou-lhe se achava que deveria ter respondido em tribunal e cumprido pena por o ter feito. A senhora assinou.
Isto vai ficar pior antes de ficar melhor.

9 thoughts on “As desonestidades intelectuais do NÃO

  1. A imagem da barriga onde se lia “aqui mando eu” vem ao encontro daquilo que chamas a jurisprudência do corpo do indivíduo significa uma imagem errada do ponto de vista táctico que produziu efeitos contrários aos desejados pela maioria dos defensores do sim. Fica eliminiada portanto, de uma vez, toda a questão ligada aos direitos das mulheres numa sociedade onde só a existência desta lei, por si, já transmite o papel que as mulheres ocupam. Imaginemos que na barriga estava escrito (como fizeram os gato fedorento) “aqui manda o Dr. Gentil Martins”, ou “aqui manda o Estado”, ou ainda “aqui manda Deus” ou “aqui manda o sr.prior”.
    A estratégia moderada da(s) campanha(s) do Sim têm provavelmente este efeito que falas. Aceito que a vitóia do sim pode por si trazer este debate e ser porta de entrada para as questões do género. Mas é com muito custo e mesmo com dúvidas em relação à(s) vitória(s) que vejo o abandonar da luta ideológica, a única talvez a realizar a fractura no que referes como questão civilizacional.

  2. Quando vejo os gajos como o Nuno Melo e outros que tais, as beatas e as tias, os padres e os mafiosos da OPUS DEI a perorar verborreia demagógica lembro-me sempre das fogueiras da inquisição, de toda a merda colonial que sempre defenderam, da pena de morte, da escravatura, das criadas engravidadas pelo patrão, dos presos e mortos do fascismo, do preservativo, da sacralidade do corpo (Quando é que a igreja admitiu a autópsia e a cirurgia?)…São os mesmos, não são?A mesma retórica conservadora e bafienta. Injustiça ao serviço de uma moral de cartilha e preconceito, elitismo à guarda da mentira, do falsear da realidade privada em nome dessa moral pública autoritária. O problema dessa gente não é haver aborto(s), isso pouco lhes importa, o que lhes é realmente insuportável é que o haja como direito de CIDADANIA e com condições em que a dignidade humana não seja posta em causa.

  3. fiquei com vontade de provar esse pudim…
    De facto tens razão, não me lembro de ver nada na rua da campanha do sim. Isto ainda nem começou e a Igreja já está a ganhar por três a zero.

  4. Jó, gostaria de voltar a ler textos teus no spectrum. O que me chateia mais nesta história da anulação intencional das questões de género é que ela parte do pressuposto paternalista e instrumental que, se as discutirmos, cedo iremos escrever na barriga “aqui mando eu”, plantar os dizeres à frente da Igreja de S. Domingos e assustar com isso as beatas da missa das 19h, o que acabaria por ser tacticamente desfavorável. O problema é que este paternalismo instrumental é em tudo semelhante à mentalidade do NÃO: acha-se no direito de me negar a capacidade de discernir.

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