Gringolândia


Ramos, Rui, “O desprezo de Che Guevara” in Atlântico, nº31, Outubro de 2007
Após leitura emprestada, compro hoje a revista Atlântico para me debruçar com atenção sobre o universo paralelo do liberalismo português. Há muito por onde escolher, mas por agora fico-me pelo artigo de Rui Ramos. Destaco em todo o caso que uma assinatura anual da revista nos dá direito a “uma t-shirt «Richards» no valor de 40€, branca ou azul, limitada ao stock existente” (juro).

O que nos diz então o Rui?
Coisas giras: “Em 1959, Cuba, o segundo maior produtor mundial de açúcar, não era um país pobre. Tinha mais televisões per capita do que a Itália e mais estradas por quilómetros quadrados do que Portugal.”
Coisas reconfortantes:“Em Cuba, Castro e Guevara haviam enfrentado um governo fraco e contestado por todos os partidos políticos, e a quem os EUA cortaram apoio em 1958. […]Os seus 2000 homens armados na montanha desempenharam um papel secundário: a maior parte das mortes resultou de confrontos entre manifestantes e polícias nas cidades. Tudo foi finalmente decidido por intrigas de bastidores, que fizeram o ditador Baptista a fugir, convencido de que os EUA preferiam Castro para governar Cuba.”
Coisas incompreensíveis: “Na Bolívia, os camponeses que o viram e ao seu bando chamaram-lhes, como Guevara notou no diário, «os gringos». Era o nome dado aos brancos dos EUA. Guevara, o inimigo dos gringos, era um gringo: o filho literato de uma família de aristocratas e milionários argentinos, definido acima de tudo pelo ancestral ressentimento das elites espanholas da América contra os EUA – um sentimento suficientemente forte para a família se lembrar que Guevara, em 1945, se opôs à entrada da Argentina na guerra contra a alemanha nazi, porque considerava os EUA, e não o nazismo, o inimigo principal. Curiosamente, ao embaixador soviético em Cuba, Nicolai Leonov, Guevara não pareceu um latino. Era demasiado organizado, pontual, exacto: «como um alemão».”

Muito nos diz o Rui, mas por agora gostaríamos de assinalar apenas aquilo que ele não nos diz. Num estranho mas refrescante contributo para o desaparecimento do autor, multiplicam-se as referências e as citações, mas poucas são as fontes mencionadas. Contamo-las para que não fiquem dúvidas. São quatro obras citadas em quatro páginas: Antes que anoiteça, A guerrilha do Che, o Livro Negro do Comunismo e O Homem e o Socialismo em Cuba. Respectivamente Reinaldo Arenas (um dissidente cubano perseguido pela sua homossexualidade e exilado nos EUA), Régis Débray (um comunista convertido à guerrilha e depois ao catolicismo), Stéphan Courtois (um ex-maoísta ressentido) e Ernesto Guevara. Ao leitor mais atento não escapará o pormenor mais óbvio – apesar do artigo ser dedicado a Che Guevara, só uma das obras referidas foi escrita por ele. De resto, há umas referências fugazes e umas citações saltitantes dos diários do Congo e da Bolívia, mas nada que mereça regras de citação bibliográfica próprias de um historiador.

Evidentemente, o parágrafo dedicado a «O Homem e o socialismo em Cuba» também não teve honras de citação, apenas de síntese penetrante e arguta: “Foi assim que ele compreendeu o seu fracasso económico em Cuba. Os trabalhadores deveriam ter produzido bens e serviços por zelo ideológico, sem outro incentivo. Mas ainda não estavam suficientemente amestrados. Em «O Homem e o Socialismo em Cuba», de 1965, explicou por isso que a «ditadura do proletariado», ao contrário do que ensinavam os clássicos marxistas, não se devia exercer apenas contra a burguesia, mas sobre cada um dos membros do proletariado «individualmente». Guevara queria transformar as pessoas. Nunca lhe interessou percebê-las.”


Note-se que não me passa pela cabeça alinhar aqui qualquer defesa de Guevara, Castro ou do regime cubano. Ícones românticos nunca me seduziram e guardo apenas na memória as três horas de pé durante um comício de solidariedade com Cuba realizado em Matosinhos, passadas a escutar um interminável discurso de Fidel. Mas lá está, a falta de seriedade e de rigor provoca-me uma comichão e um desconforto que t-shirts brancas de 40€ não conseguem resolver.

O tratamento das questões económicas é particularmente desonesto. Ao que parece Cuba, um país riquíssimo até 1959, era já pobre em 1965 e outro tanto em 1999. Mas, lá está, este país rico que produzia açúcar e albergava hotéis de luxo (quem não se lembra de Pacino em Habana, n’O Padrinho II), vendia toda a sua colheita e alugava todos os seus quartos a americanos.
Vantagens comparativas e tudo o mais são muito bonitas nos livros de David Ricardo e na cotação do acúcar em Wall Street, mas quando se procura renegociar as suas condições e se obtém como resposta o embargo comercial e a tentativa de invasão, atentados e sabotagens – como os que se vão conhecendo agora a partir da abertura dos ficheiros da CIA – , é natural que os jovens idealistas de 1959 se tornem os ferozes comunistas de 1962. E naturalmente que a reconversão de uma economia dependente de um só fornecedor e comprador não costuma resultar em elevadas taxas de crescimento a curto prazo. Por outro lado, de 1965 a 1999 vão 34 anos e não é costume comparar resultados económicos aleatoriamente, desligados de ciclos crescimento e estagnação claramente identificáveis. Em 1991 o principal comprador e fornecedor da economia cubana colapsou e ainda não alcançou, em 2007, os indicadores económicos do período do socialismo real. Trocaram os cubanos uma dependência por outra? É provável que o tenham feito. Mas já que estamos do domínio dos indicadores e dos resultados, seria bom ter em conta o esforço de diversificação da economia cubana no período em causa e, porque não, ter em conta outros índices de desenvolvimento. A economia cubana cresceu consideravelmente até aos anos 80 e, apesar de não superar a Itália em número de televisores e Portugal em kilómetros de estrada, superava-os em número de médicos por habitante e em níveis de literacia.

Mas o centro do artigo é o fenómeno cultural e comercial associado a che guevara. Diz-nos Rui Ramos que foi iconizado por uma pequena-burguesia de esquerda que frequenta as universidades europeias e latino-americanas, por quem o próprio Guevara sentiria desprezo. E no entanto, sendo isso verdade, não explica o fenómeno de popularidade generalizado em toda a américa latina, a começar pelos pobres e pelos camponeses que este supostamente não estimava nas suas concepções e estratégias. É a própria persistência do fenómeno guerrilheiro no continente, a assimilação de Guevara à resistência ao imperialismo, a sua sobrevivência enquanto espectro, que revelam a persistência do quadro político e social que motivou um jovem médico argentino a acompanhar um punhado de jovens num barco velho, para fazer desembarcar em Cuba uma esperança de liberdade.
Ali, o tabuleiro de xadrez da secular guerra civil que opõe os pobres aos ricos segue ainda o mesmo traçado e encontra, de um lado e de outro, as respectivas «máquinas de matar, friamente movidas a fanatismo ideológico». Só que a ideologia exprime aqui, pelos caminhos travessos que são os seus, posições bastante reais e concretas de antagonismo. Se os guerrilheiros aprenderam a matar e a mover-se como um exército beligerante nas suas relações com os camponeses foi porque receberam dos seus inimigos as mais pedagógicas lições de brutalidade.

Resta o regime autoritário de Cuba. Ninguém razoável aceita discutir com liberais pró-americanos acerca de regimes autoritários na América Latina. O marxismo pode ter encontrado aí as suas formulações mais românticas e as suas degenerescências mais caricatas. Mas quem esquece o rosto democrático e os métodos esclarecidos com que ali fez caminho a versão do liberalismo que nos é mais familiar?
No domínio dos laboratórios políticos e das experiências autoritárias de engenharia humana, o capitalismo demonstrou todas as suas vantagens. Algures entre Chicago e o Panamá, entre a mão invisível do mercado e o braço armado da contra-insurgência, entre a tortura e o desemprego, tomou forma uma nova ordem mundial, uma verdadeira revolução afinal. Dos seus mortos ainda muito há a falar, mas talvez não seja ousado supor uma relação qualquer entre aquela manhã de 8 de Outubro de 1967, nas montanhas bolivianas, e uma outra igualmente nebulosa, de 11 de Setembro de 1973, em Santiago do Chile, quando o general Augusto Pinochet tomou de assalto um palácio, dando início a um longo inverno.

3 thoughts on “Gringolândia

  1. mas essa revista nao é do paulo teixeira pinto? e o gajo nao é da opus dei? o rui ramos é da opus dei? a helena matos é católica? a helena matos é da opus dei? já não percebo nada disto.

  2. Eu sou do Sporting. E também gostava de ser historiador. Também posso ser eu a por os bigodinhos nas fotos se for historiador? Eu sei usar o Photoshop! Parece ser fácil, isso, não parece ser preciso saber muita coisa sobre um assunto para se escrever um textinho sobre X. Ou sobre Y. Bem, na verdade o que parece é que se puser um bigodinho no X, até posso dizer que tou a falar é do Y. Obrigado Rui Ramos, por me mostrares a luz. Epá, era mesmo isso, ser historiador. Se jogasse tanto como o Izmailov, tinha ido para jogador da bola, mas como só jogo bem snooker acho que quero mesmo ser historiador.

  3. Eu acho que artigos como este do Rui não têm como resultado denegrir a imagem do Che mas sim branquear o fascismo e o nazismo.
    “Afinal hitler era tão mau como che e vice-versa. Se toda a gente anda com t-shirts do che, se mesmo aqueles que não são guevaristas e estão longe disso, são capazes de admitir que ele só queria o bem do povo e alimento e terra para os camponeses, porque não também não tolerar hitler e até defendê-lo faces a esses anti-fascistas primários que por aí andam?” É este o raciocínio desta direita portuguesa. É isto que leva um pacheco pereira a defender o coitadinho do mário machado que foi “preso por delito de opinião”. Isto, apesar de pelos vistos os Skins já terem ameaçado de morte a juíza que o mandou prender.

Comentar